CARACTERIZAÇÃO DO TERRITÓRIO E ANÁLISE ESPAÇO-TEMPORAL DA PESCA DE CAMBOA NO NORDESTE DO BRASIL ENTRE OS ANOS DE 2000 E 2023
Pesca artesanal, Estuário, Rio Formoso, Camboa, Bacia hidrográfica, Uso e ocupação do solo, Sustentabilidade, Território pesqueiro, RESEX do Rio Formoso, APA Guadalupe.
A dissertação aborda a caracterização e análise espaço-temporal da pesca artesanal de camboa no complexo estuarino do Rio Formoso, localizado no litoral sul de Pernambuco, Brasil na Bacia Hidrográfica do Estuário do Rio Formoso (BHERF). Uma abordagem de paisagem foi utilizada, na qual foi inicialmente delimitada e quantificada a área de alterações de uso e ocupação do solo da BHF ao longo das últimas três décadas. O objetivo foi compreender a dinâmica das alterações no território e a dinâmica da pesca de camboa, avaliando as influências de fatores ambientais, espaciais, estruturais e antrópicos no desempenho da atividade, considerando variáveis como uso do solo, esforço de pesca, captura e Captura por Unidade de Esforço (CPUE) a partir de dados de monitoramento de pesca disponíveis para o período entre 2000 e 2023.
Entender e gerenciar as crescentes ameaças de diversas pressões antropogênicas em estuários requer índices para avaliação e monitoramento de impactos que forneçam quantificação precisa das mudanças e sejam facilmente comunicáveis. Para tanto, foram aplicados métodos de sensoriamento remoto, SIG (Sistemas de Informação Geográfica) que permitiram identificar mudanças significativas na paisagem, incluindo aumento de áreas urbanas e expansão de pastagens, o que, juntamente com o turismo, pressiona a sustentabilidade da pesca. A análise da BHERF, cobrindo 175,25 km², identificou mudanças significativas no uso e ocupação do solo entre 1990 e 2022. O Estuário do Rio Formoso (ERF) localiza-se na Área de Proteção Ambiental de Guadalupe (APAG), abrangendo os municípios de Sirinhaém, Tamandaré, Barreiros e Rio Formoso, no litoral sul de Pernambuco. Esse território cobre aproximadamente 2.724 hectares e é formado por três rios principais: o Rio Formoso, o Rio dos Passos e o Rio Ariquindá.
Observou-se uma transformação da paisagem impulsionada por fatores socioeconômicos e ambientais, com destaque para o crescimento urbano, a expansão agropecuária e, em menor escala, a recuperação ambiental. A análise temporal da dinâmica de uso e ocupação do solo revelou padrões de estabilidade em alguns tipos de uso e significativas transformações em outros. O aumento mais expressivo foi o de áreas urbanas, indo de menos de 1% do território, para 5,3%, com crescimento mais expressivo na região costeira de Tamandaré, impulsionada após os anos 1990 pelo Prodetur. As áreas de pastagem passaram de 2,42% para 5,95%, especialmente após 2010, o que pode refletir uma intensificação da atividade pecuária, e consequente aumento da pressão sobre o solo e vegetação nativa. Por outro lado, a categoria mosaico de usos diminuiu significativamente, de 47,95% para 33,60%, sugerindo uma expansão das atividades de uso do solo, com áreas anteriormente diversificadas sendo transformadas para usos específicos ou uma possível reclassificação dos dados de satélite.
As áreas de floresta aumentaram de 9,14% em 1990 para 15,35% em 2022, sugerindo uma recuperação da cobertura vegetal, principalmente em áreas ocupadas por comunidades tradicionais, como evidenciado na região da Comunidade Quilombola do Engenho Siqueira. A redução dos corpos d’água, que passou de 7,5% em 1990 para 5,8% em 2022, pode estar associada a processos de assoreamento, que é intensificado por vários fatores, dentre eles a expansão da carcinicultura, agropecuária e urbana. Esse processo pode estar relacionado com a pequena expansão da vegetação de mangue, que avançam sobre áreas assoreadas que se tornaram mais rasas ao longo do tempo. Esse fenômeno ocorre à medida que o acúmulo de sedimentos reduz a profundidade de certas regiões, criando condições favoráveis para a colonização por espécies de mangue. O cultivo de cana-de-açúcar em Pernambuco possui uma longa tradição, que atravessa séculos e molda a paisagem e economia da região. O último grande impulso econômico para essa atividade ocorreu com o Programa Proálcool, lançado na década de 1970, que incentivou a produção de etanol a partir da cana e aumentou significativamente a demanda por áreas de cultivo. Como resultado, a cana-de-açúcar consolidou-se de forma abrangente e, antes mesmo dos anos 1990, já ocupava praticamente todas as áreas ideais para seu plantio, não sendo evidenciado nenhum aumento expressivo em área destinadas a esse fim.
Modelos estatísticos foram aplicados para avaliar as relações entre essas variáveis e a dinâmica da atividade pesqueira. Durante o período 2000-2023, como parte dos esforços conjuntos do Projeto Recifes Costeiros e Projeto Meros do Brasil, foram registrados 345 desembarques de camboas no ERF, onde foram identificados 65 pontos tradicionais de pesca usados pelos camboeiros. A camboa é uma arte de pesca tradicional, semi fixa, que consiste na instalação de redes fixadas ao longo do manguezal ou atravessando canais que operam de acordo com o regime de meso-marés na região. O tamanho das redes variou de 115 a 3000 metros. O Rio dos Passos destacou-se com as maiores médias de esforço e capturas, especialmente próximo à confluência dos rios Frade e Rosa. Ao longo do período amostral, que teve descontinuidades, foi possível agrupar os dados em cinco blocos temporais: Bloco 1 anos 2000; Bloco 2 de 2007 a 2009; Bloco 3 de 2012 a 2013; Bloco 4 de 2015 a 2019 e Bloco 5 de 2021 a 2023. No rio dos Passos foram registradas as maiores capturas , enquanto no rio Formoso foi observada a maior eficiência (CPUE). Regressões lineares mostraram uma correlação positiva significativa entre captura e esforço (R² variando de 0,5785 a 0,7139), indicando que o esforço explica uma parte substancial da captura, especialmente nos rios Ariquindá e Passos.
Análises adicionais com o teste Kruskal-Wallis indicaram diferenças significativas na captura em função das estações, blocos temporais, tipos de armação e rios (p < 0,05), mas não em relação às fases da lua ou amplitude de maré. Diferenças significativas foram observadas entre os tipos de armação das camboas, como Costa e Canal (p < 0,05), e entre pares de blocos temporais, como Bloco amostral 3 e 4 (p < 0,05), porém não foram observados efeitos significativos entre períodos secos e chuvosos utilizando os testes de Mann-Whitney.
Modelos Aditivos Generalizados (GAMs) foram aplicados para investigar a relação entre CPUE e variáveis ambientais (lua e amplitude de maré), espaciais (rios) e operacionais (tamanho das redes). Para isso, foram selecionados os três pontos de camboa mais representativos na amostragem (um em cada rio), ou seja os que tiveram uma série temporal de amostragem continuada. Para a camboa Gorcana (Formoso, N=26), foi identificado uma redução significativa de CPUE no bloco 4 em relação ao bloco de referência (p < 0,05). Na camboa Porto Alegre (Ariquindá, N=51), a fase minguante da lua teve um efeito positivo significativo na CPUE (coeficiente de 0,57636; p < 0,05), enquanto o tamanho da rede apresentou uma relação negativa com CPUE (p < 0,005). No modelo para a camboa As Cobra (Passos, N=31), apenas a amplitude de maré foi significativa (p < 0,05), com efeitos não lineares que sugerem uma maior eficiência de captura em marés intermediárias, que ocorrem entre as maré de quadratura e de sizígia.
O estudo foi pioneiro na caracterização da BHERF e análise das alterações do uso e cobertura do solo para essa região. Além disso, mostramos que a dinâmica da pesca de camboa no ERF é complexa e recomenda políticas de manejo que considerem as particularidades de cada território e das dinâmicas que nele ocorrem, com atenção especial ao controle do esforço em áreas mais sensíveis. A pesquisa destaca a importância da gestão integrada do território para a conservação dos recursos pesqueiros e para o fortalecimento das comunidades tradicionais locais.