“CONTA PRA MIM”: A (RE)PRODUÇÃO DE PADRÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADE E FAMÍLIA NO PROGRAMA DE LITERACIA FAMILIAR DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.
Literacia familiar, neoliberalismo, neoconservadorismo, gênero, sexualidade, teoria do discurso.
Desde o golpe parlamentar de 2016 e, especialmente, durante a gestão do então presidente Jair Bolsonaro, o significante “educação” ganhou evidência em acirradas disputas discursivas, num cenário de contradições políticas e morais onde o recrudescimento do neoliberalismo e neoconservadorismo colocou em risco políticas curriculares pautadas nos direitos humanos, sexuais e reprodutivos. Estratégias visando a instalação de pânico moral foram mobilizadas em torno de falácias como a do ensino de uma suposta “ideologia de gênero” nas escolas e universidades; da ameaça à “família tradicional brasileira”, aos “bons costumes” e à “segurança das crianças e dos adolescentes”. Diversos estudos têm constatado a contundente presença de um ativismo religioso, seguido por grupos laicos ou não necessariamente confessionais, que encontram nessas falácias um artifício retórico de mobilização política e influência na arena pública. Vislumbra-se aí ofensivas reacionárias, fundamentalistas, originalmente de matriz católica e de caráter transnacional, que assumiram a conformação de “guerras culturais”. Nesse contexto de obscurantismo bélico, o movimento em prol da educação domiciliar (homeschooling) ganhou força e passou a influenciar decisões do Ministério da Educação (MEC). Este estudo discute as lógicas sociais de produção de padrões de gênero, sexualidade e família mobilizadas no “Programa de Literacia Familiar Conta Pra Mim”, ligado à Política Nacional de Alfabetização (PNA). Parte do pressuposto que lógicas sociais são um sistema de regras ou gramática que sustenta determinadas práticas discursivas em espaços-tempos específicos. O corpus foi constituído por componentes do kit pedagógico oferecido pelo Programa e disponível no site do MEC. A pesquisa evidenciou que o “Conta pra mim” foi implementado num contexto de ausência de diálogo com as comunidades escolares, acadêmicas e a sociedade civil, violando o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas; pauta-se em representações limitadas da educação literária e aciona lógicas cisheteronormativas sobre família, sexualidade, gênero e relações entre as pessoas, configurando-se como violência simbólica e estratégia de esvaziamento do papel da escola. Sua implementação, entretanto, não se dá num contexto de resignação, evidenciando o caráter discursivo do social, a contingência difusa e múltipla do terreno político e o papel central de discursos opostos no processo de articulação e disputa de hegemonia no campo educacional.