VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E DANO MORAL PRESUMIDO: ANÁLISE DAS DECISÕES DA CÂMARA REGIONAL DE CARUARU EM PERSPECTIVA INTERSECCIONAL DE GÊNERO
Violência doméstica; dano moral, decisões jurídicas; gênero; interseccionalidade.
A presente dissertação teve como objetivo analisar, em perspectiva interseccional de gênero, as decisões que apreciam a fixação de indenização por dano moral, em ações penais sobre
violência doméstica, oriundas da Câmara Regional de Caruaru, entre os anos de 2021 e 2023. Utilizamos como marco decisório o julgado do STJ que, em 2018, em sede de repercussão
geral, reconheceu que em casos de violência doméstica contra mulher é possível a fixação de
indenização por danos morais, independente de instrução probatória, ou seja, in re ipsa, como
mínimo indenizatório já no julgamento da ação penal. Parte-se da lógica que a violência
doméstica é uma violação de direitos humanos da vítima, cuja proteção está garantida em
tratados internacionais, no entanto, falta ao aplicador do direito olhar interdisciplinar que
compreenda a mulher, não como categoria universal, mas em seus diferentes atravessamentos. Metodologicamente, esta pesquisa utiliza a abordagem qualitativa, com técnica exploratória e
documental, através da análise de conteúdo de Bardin (1977), em articulação com o software
Iramuteq, que possibilitou a visualização de coocorrências vocabulares, classes de
segmentação discursiva e redes de similitude entre termos que compões as decisões. O corpus
analisado foi composto por 38 acórdãos que examinaram recursos em ações penais
envolvendo violência doméstica, no período delimitado, após mecanismos de triagem, formando um conjunto representativo do tratamento conferido ao dano moral pela Câmara
Regional de Caruaru. O referencial teórico utilizado como base interpretativa parte da leitura
crítica dos direitos humanos e do feminismo decolonial e negro, buscando uma análise
interseccional de gênero, marcado por autoras como Lugones, Buttler, Ribeiro, Akotirene, Carneiro, Vergès, Kilomba e outras que nos auxiliaram na interpretação dos dados. Os
resultados obtidos na pesquisa apontam que são raras as decisões que fixam o dano moral para
a vítima de violência doméstica e, mesmo quando há a fixação, pouco se fala sobre a violação
sofrida pela mulher, evidenciando uma lacuna discursiva significativa. Há no discurso judicial
predominância de linguagem técnico-processual e penal, fortemente centrada nos vocábulos
relacionados à dosimetria da pena, à materialidade do crime e às formalidades recursais. Embora a palavra “vítima” seja a mais recorrente do corpus, aparece esvaziada de densidade
social ou subjetiva, desvinculada de marcadores de gênero, classe, e raça, funcionando como
categoria probatória processual, que muitas vezes deve estar aliada a outros elementos de
prova, refletindo uma desconfiança estrutural em ralação ao depoimento da mulher. Esta
pesquisa constata que as decisões analisadas têm o agressor na centralidade do discurso, reconhecendo a violência doméstica para fins de condenação penal, mas não para reparação
integral da mulher que a sofreu, perpetuando invisibilidade da compreensão deste fenômeno
complexo, sobretudo quando observado que mulher não é uma categoria universal, mas
atravessada por marcadores como classe e raça. O não-dito mostra-se como resultado de
pesquisa, evidenciando ausências e contradições, apontando para necessidade de uma
hermenêutica judicial que passe a ser mais comprometida com os direitos humanos e com a
efetiva reparação das violações sofridas pelas mulheres em contexto de violência doméstica, considerando, ainda, seus atravessamentos sociais.